Por Carlos Lourenço, Professor do ISEG
Imagine-se que chegaram a um hospital, no mesmo exato momento, duas meninas de cinco anos exatamente iguais fisicamente, cada uma como se fosse a cópia da outra, e com necessidades de tratamento médico exatamente iguais. Tudo é exatamente igual. Sabe-se que uma das meninas se chama Fatima, e é afegã, e a outra chama-se Fátima, e é portuguesa. Qual das meninas deve a médica de serviço assistir primeiro?
Do ponto de vista médico, porque ambas as crianças têm a mesma condição médica, e segundo o princípio médico de igualdade de cuidado para igual necessidade, não há justificação para tratar uma menina antes da outra. Deve a médica então usar a cidadania, a nacionalidade, como critério para decidir?
Do ponto de vista ético, o uso da nacionalidade como critério para prioritizar o atendimento colide com os princípios éticos de justiça e igualdade, uma vez que é claramente discriminatório. Por que razão a menina afegã, simplesmente por ser afegã, deveria ser atendida antes da menina portuguesa? Por que razão a menina portuguesa, simplesmente por ser portuguesa, deveria ser atendida antes da menina afegã?
Excluídos que estão os critérios médico e de cidadania, o que pode auxiliar a médica a decidir?
Mesmo que outra escassez de recursos não houvesse, dado que, por definição, o tempo, nomeadamente, o da médica, é um recurso escasso, a procura por um mecanismo de decisão que permita escolher que menina assistir primeiro é passível de ser levada a cabo à luz da ciência económica — e é do interesse desta. Esta observação óbvia, relativamente à escassez do recurso tempo, é, aliás, o que está na base da aplicação da ciência económica à análise de quaisquer escolhas individuais ou coletivas, e talvez o grande contributo do economista Gary Becker, galardoado com o prémio Nobel da economia em 1992.
Contudo, o estudo da decisão racional não é, obviamente, um exclusivo da ciência económica.
Com isto em mente, no que diz respeito ao dilema médico enunciado, estaremos perante o “paradoxo do burro de Buridan”, em referência ao filósofo francês do século XIV, Jean Buridan? Anteriormente formulado por Aristóteles no contexto do equilíbrio das forças físicas, e mais tarde pelo filósofo persa Al-Ghazali no século XII, este paradoxo diz-nos que um decisor racional, por exemplo, um burro com fome, uma vez confrontado com duas opções exatamente iguais, ao não conseguir discriminar entre elas ou por não haver forma de determinar qual delas é a melhor, acabará por não conseguir decidir, acabando por morrer.
Neste caso não será assim. De facto, a solução é simples e está literalmente à mão da médica: nas circunstâncias descritas, a escolha de qual menina assistir primeiro — se a portuguesa, se a afegã — só pode ser levada a cabo por um sistema aleatório justo, como é o lançamento de uma moeda ao ar. Cara, a portuguesa, coroa, a afegã, por exemplo.
Pelo exposto, as declarações de extrema-direita — “as crianças têm que ser protegidas, mas depois dos portugueses”, “estou de acordo que os imigrantes tenham acesso a creches, escolas e hospitais, mas desde que os portugueses estejam em primeiro lugar” — no seguimento da divulgação nas redes sociais online e no parlamento, por parte de deputados do partido Chega, de nomes de crianças no sistema pré-escolar público em Lisboa, sob o argumento de que crianças imigrantes (supõe-se, de nacionalidade que não a portuguesa) são beneficiadas, são declarações xenófobas e que incentivam à xenofobia. Porquanto incentivam explicitamente a que se discrimine o acesso aos cuidados de saúde com base na nacionalidade de quem necessita desses cuidados, crianças incluídas.




